As duas
primeiras partes desse artigo foram escritas entre os anos de 1885 a 1886. As
partes finas do artigo, terceira e quarta parte, foi realizada até 1893. A leitura
dessas 4 partes é interessante para acompanhar
a evolução dos estudos da histeria, por Freud.
Na época em que, em 1885 e 1886, fui
aluno de M. Charcot, ele teve a grande amabilidade de me confiar a tarefa de
efetuar um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas,
baseado nas observações do Salpêtrière, na esperança de que tal estudo pudesse
revelar algumas características gerais da neurose e proporcionar melhor visão
da sua natureza. Por motivos fortuitos e pessoais, durante muito tempo me vi
impedido de realizar a incumbência que ele me dera; e mesmo agora estou
apresentando somente alguns dos resultados de minhas pesquisas, deixando de
lado os detalhes necessários a uma completa formulação de minhas opiniões.
I
Devo
começar apresentando algumas observações acerca das paralisias motoras
orgânicas, observações que, aliás, são de aceitação geral. A neurologia clínica
reconhece dois tipos de paralisia motora — paralisia periférico-medular ou
(bulbar) e paralisia cerebral. Essa distinção condiz inteiramente
com os achados da anatomia do sistema nervoso, que mostra que o trajeto das fibras
condutoras da motricidade se divide em apenas dois segmentos: o primeiro
segmento estende-se da periferia até as células do corno anterior da medula
espinhal, onde começa o segundo segmento, que vai até o córtex cerebral. A
histologia moderna do sistema nervoso, fundamentada no trabalho de Golgi, Ramón
y Cajal, Kölliker etc., exprime esses fatos com a afirmação de que “o trajeto
das fibras da condução da motricidade é constituído por dois neurônios (unidades
neurais célulo-fibrilares), que se acham em conexão e se relacionam entre si no
nível das células conhecidas como células motoras do corno anterior”. A
diferença essencial entre essas espécies de paralisia, em termos clínicos, é a
seguinte: a paralisia periférico-medular é uma paralisia “détaillée”, a
paralisia cerebral é uma paralisia “en masse”.
O tipo da primeira é a paralisia facial
na paralisia de Bell, a paralisia da poliomielite infantil aguda etc. Nessas
doenças, cada músculo — poder-se-ia dizer, cada fibra muscular — pode estar
paralisado individualmente, isoladamente. O que acontece depende da localização
e da extensão da lesão nervosa; não há regra fixa segundo a qual um elemento
periférico possa escapar da paralisia, enquanto outro é afetado por ela
permanentemente.
A paralisia cerebral, pelo contrário, é
sempre um distúrbio que acomete uma parte extensa da periferia, um membro, um
segmento de uma extremidade, ou um aparelho motor complexo. Nunca afeta um
único músculo — por exemplo, o bíceps no braço ou o tribial, isoladamente; e se
existem evidentes exceções a essa regra (por exemplo, a ptose cortical),
podemos constatar claramente que o que está em questão são músculos que
executam por si mesmos uma função da qual constituem o único instrumento.
Nas paralisias cerebrais dos membros
pode-se observar que os segmentos distais sempre estão mais comprometidos do
que os proximais; por exemplo, a mão está mais paralisada do que o ombro. Pelo
que sei, não existe, por exemplo, uma paralisia cerebral do ombro,
isoladamente, com a mão conservando sua motilidade, ao passo que o contrário
constitui regra nas paralisias que não são completas.
No estudo crítico da afasia, publicado
em 1891, procurei mostrar que a causa dessa importante diferença entre as
paralisias periférico-medulares e cerebrais deve ser investigada na estrutura
do sistema nervoso. Cada elemento da periferia corresponde a um elemento da
massa cinzenta da medula, que, conforme disse Charcot, é sua terminação
nervosa; a periferia, por assim dizer, é projetada sobre a massa cinzenta da medula,
ponto por ponto, elemento por elemento. Propus dar à paralisia
periférico-medular détaillée o nome de paralisia em
projeção. Mas o mesmo não se aplica às relações entre os elementos da
medula e os do córtex. O número de fibras condutoras já não seria suficiente
para dar uma segunda projeção da periferia sobre o córtex. Devemos supor que as
fibras que se estendem da medula até o córtex não representam mais, cada uma em
separado, um elemento único da periferia, e sim um grupo de elementos
periféricos, e que até mesmo, por outro lado, um elemento da periferia pode
corresponder a diversas fibras condutoras medulo-corticais. O fato é que há uma
modificação no ordenamento das fibras no ponto de conexão entre os dois
segmentos do sistema motor. Sustento, pois, que a reprodução da periferia no
córtex não é mais uma reprodução fiel, ponto por ponto; que não é mais uma
projeção verdadeira. É uma relação por meio do que se pode chamar de fibras
representativas, e para a paralisia cerebral proponho o nome de paralisia
em representação.
Naturalmente, quando a paralisia em
projeção é total e muito extensa, também ela é uma paralisia en masse e
sua característica principal é eliminada. Por outro lado, a paralisia cortical,
que se distingue dentre as paralisias cerebrais por sua maior tendência à
dissociação, sempre apresenta, ainda assim, o caráter de uma paralisia em
representação.
As outras diferenças entre paralisias em
projeção e paralisias em representação são bem conhecidas. Posso citar, como
exemplos de tais diferenças, a nutrição normal e a integridade das reações à
eletricidade [nas partes afetadas] que estão associadas à última. Embora sejam
muito importantes sob o aspecto clínico, esses sinais não possuem a importância
teórica que se costuma atribuir à primeira característica diferencial que
mencionamos — paralisia détailléee paralisia en masse.
Com muita freqüência tem-se atribuído à
histeria a capacidade de simular as mais diferentes doenças
nervosas orgânicas. Surge a questão de saber se, mais precisamente, ela simula
as características dos dois tipos de paralisias orgânicas, se existem
paralisias histéricas em projeção e paralisias histéricas em representação, tal
como as que encontramos na sintomatologia orgânica. Nesse ponto emerge um
aspecto importante. A histeria nunca simula paralisias periférico-medulares ou
paralisias em projeção; as paralisias histéricas somente compartilham as
características das paralisias orgânicas em representação. Este é um dado muito
interessante, pois a paralisia de Bell, a paralisia radial etc. estão entre os
distúrbios mais comuns do sistema nervoso.
Convém assinalar aqui, com a finalidade
de evitar qualquer confusão, que estou tratando somente das paralisias
histéricas flácidas, e não das contraturas histéricas. Parece
impossível aplicar as mesmas regras às paralisias histéricas e às contraturas
histéricas. Pode-se afirmar que é típico das paralisias histéricas flácidas não
afetarem músculos isolados (exceto onde o músculo em questão é o único
instrumento de uma função), serem sempre paralisias en masse e,
nesse aspecto, corresponderem às paralisias em representação ou paralisias
cerebrais orgânicas. Além disso, no que tange à nutrição das partes paralisadas
e às suas reações à eletricidade, as paralisias histéricas apresentam as mesmas
características que as paralisias cerebrais orgânicas.
Se a paralisia histérica está assim
correlacionada com a paralisia cerebral e, em especial, com a paralisia
cortical, que apresenta maior tendência à dissociação, por outro lado delas se
distingue por importantes características. Em primeiro lugar, não obedece à
regra, que se aplica regularmente às paralisias cerebrais orgânicas, segundo a
qual o segmento distal sempre está mais afetado do que o segmento proximal. Na
histeria, o ombro ou a coxa podem estar mais paralisados do que a mão ou o pé.
Podem surgir movimentos dos dedos enquanto o segmento proximal ainda está
absolutamente inerte. Não existe a menor dificuldade em produzir
artificialmente uma paralisia isolada da coxa, da perna etc., e, clinicamente,
podem-se encontrar com muita freqüência essas paralisias isoladas, contrariando
as regras da paralisia cerebral orgânica.
Quanto a esse importante aspecto, a
paralisia histérica é, por assim dizer, intermediária entre a paralisia em
projeção e a paralisia orgânica em representação. Se não possui todas as
características de dissociação e delimitação próprias da primeira, está longe
de ver-se submetida às leis estritas que regem a segunda — a paralisia
cerebral. Tendo em conta tais restrições, pode-se afirmar que a paralisia
histérica também é paralisia em representação, mas com um tipo especial de
representação cujas características permanecem como um assunto a ser
desvendado.
II
Como um passo nessa direção, proponho
estudar as demais características que fazem a distinção entre a paralisia
histérica e a paralisia cortical, o tipo mais acabado de paralisia cerebral
orgânica. Já mencionamos a primeira dessas características — o fato de que a
paralisia histérica pode estar mais dissociada, mais sistematizada do que a
paralisia cerebral. Na histeria, os sintomas da paralisia orgânica aparecem
como que fracionados. Dos sintomas da hemiplegia orgânica comum (paralisia dos
membros superiores e inferiores e da parte inferior da face), a histeria
reproduz somente a paralisia dos membros, e até mesmo dissocia, com muita
freqüência e com a maior facilidade, as paralisias do braço e da perna, sob a
forma de monoplegias. Da síndrome da afasia orgânica ela copia a afasia motora,
isoladamente; e —algo não existente na afasia orgânica — ela pode criar a
afasia total (motora e sensitiva) para um determinado idioma, sem causar a
menor interferência na capacidade de compreender e de articular um outro
idioma. (Observei isto em alguns casos não publicados.) Esse mesmo poder de
dissociação manifesta-se nas paralisias isoladas de um segmento de um membro,
ao passo que outras partes do mesmo membro permanecem totalmente indenes, ou
então na total abolição de uma função (por exemplo, na abasia e na astasia),
enquanto outra função executada pelo mesmos órgãos permanece intacta. Essa
dissociação é, sem dúvida, surpreendente quando a função que não foi
prejudicada é a função mais complexa. Na sintomatologia orgânica, se existe um
debilitamento desigual de diversas funções, é sempre a função mais complexa, a
que foi adquirida mais recentemente, a que fica mais afetada em conseqüência da
paralisia.
Além do mais, a paralisia histérica exibe
uma outra característica que, por assim dizer, é o sinal identificador da
neurose e que surge como acréscimo ao primeiro. A histeria, conforme ouvi M.
Charcot dizer, é realmente uma doença com excessivas manifestações; tende a
produzir seus sintomas com a máxima intensidade possível. Essa característica
evidencia-se não só nas suas paralisias, mas também nas suas contraturas e
anestesias. Sabemos em que grau de distorção podem efetuar-se as contraturas
histéricas — grau praticamente não igualado na sintomatologia orgânica. Também
sabemos com que freqüência ocorrem na histeria as anestesias profundas,
absolutas, das quais as lesões orgânicas só conseguem reproduzir um pálido
esboço. O mesmo se dá com as paralisias. Freqüentemente, são absolutas no grau mais
extremo. O afásico não articula uma só palavra, ao passo que o afásico orgânico
quase sempre conserva algumas palavras, “sim” ou “não”, uma exclamação etc.; o
braço paralisado fica completamente inerte — e assim por diante. Essa
característica é por demais conhecida para que se insista nela. Contrastando
com isso, sabemos que, na paralisia orgânica, a paresia é sempre mais comum do
que a paralisia absoluta.
A paralisia histérica se caracteriza,
pois, pela delimitação precisa e pela intensidade
excessiva; possui essas duas qualidades ao mesmo tempo, e é nisso que
manifesta o maior contraste em relação à paralisia cerebral orgânica, na qual
regularmente se constata que essas duas características não se associam
entre si. Existem monoplegias na sintomatologia orgânica, mas quase sempre
são monoplegias a priori e sem delimitação precisa. Se o braço está paralisado
em conseqüência de uma lesão cortical orgânica, há quase sempre um
comprometimento concomitante, menor, na face e na perna; e se essa complicação não
é visível num dado momento, certamente terá existido no início da doença. A
verdade é que uma monoplegia cortical é sempre uma hemiplegia da qual um ou
outro componente está mais ou menos apagado, porém, mesmo assim, ainda é
reconhecível. Prosseguindo um pouco mais, suponhamos que a paralisia não tenha
atingido nenhuma outra parte a não ser o braço e que se trate apenas de uma
monoplegia cortical; nesse caso se verificará que a paralisia tem uma
intensidade moderada. Tão logo essa monoplegia aumenta de intensidade e se
torna uma paralisia absoluta, ela perde seu caráter de monoplegia simples e é
acompanhada por distúrbios motores da perna ou da face. Não consegue ao
mesmo tempo tornar-se absoluta e conservar sua delimitação.
Isso, pelo contrário, é o que consegue
realizar com facilidade uma paralisia histérica, como nos demonstra todos os
dias a experiência clínica. Por exemplo, afeta um braço, exclusivamente, sem
que possamos encontrar um vestígio seu na perna ou na face. Ademais, no nível
do braço, essa paralisia histérica é tão grave quanto pode ser uma paralisia, e
nisso vemos uma nítida diferença em relação a uma paralisia orgânica — uma
diferença que nos oferece redobrados motivos para reflexão.
Naturalmente, há casos de paralisias
histéricas em que a intensidade não é excessiva e em que a dissociação não é de
modo algum notável. Tais casos podem ser reconhecidos por outras
características; são, contudo, casos que não apresentam a marca típica da
neurose e que, visto não nos ensinarem nada acerca de sua natureza, não se
revestem de nenhum interesse, do nosso atual ponto de vista.
Acrescentarei alguns comentários, que
são de importância secundária e que até mesmo se situam um tanto fora dos
limites de nosso tema.
Em primeiro lugar, quero assinalar que
as paralisias histéricas, muito mais freqüentemente do que as paralisias
orgânicas, se acompanham de distúrbios de sensibilidade. Tais distúrbios
geralmente são mais profundos e mais freqüentes nas neuroses do que na
sintomatologia orgânica. Nada é mais comum do que a anestesia ou a analgesia
histéricas. Por outro lado, recorde-se com que tenacidade persiste a
sensibilidade onde há uma lesão neural. Quando um nervo periférico é lesado, a
anestesia é menor em extensão e intensidade do que seria de esperar. Se uma
lesão inflamatória atinge os nervos espinhais ou os centros medulares, sempre
verificamos que a motilidade é a primeira coisa a ser enfraquecida, de vez que
aqui e ali sempre subsistem elementos neurais que não foram totalmente
destruídos. Onde há uma lesão cerebral, já conhecemos bem a freqüência e a
duração da hemiplegia motora, ao mesmo tempo que a hemianestesia concomitante é
indistinta e transitória e não está presente em todos os casos. São apenas
algumas localizações muito especiais da lesão que conseguem produzir uma
perturbação intensa e persistente da sensibilidade (confluência de trajetos
sensitivos), e, assim mesmo, esse caso é passível de dúvidas.
Esse comportamento da sensibilidade, que
é diferente nas lesões orgânicas e na histeria, dificilmente pode ser explicado
na atualidade. Parece que aqui temos um problema cuja solução talvez possa
projetar alguma luz sobre a natureza íntima dos fenômenos.
Outro ponto que julgo deva ser
mencionado é que, na histeria, como de resto nas paralisias periférico-medulares
em projeção, não se encontram certas formas de paralisia cerebral. É o que se
passa, de modo especial, com a paralisia da metade inferior da face, que é a
manifestação mais freqüente de uma doença orgânica do cérebro, e (se me
permitem passar, por um momento, às paralisias sensoriais) com a hemianopsia
lateral homônima. Estou consciente de que é quase arriscar-se a um desafio
afirmar que esse ou aquele sintoma não é encontrado na histeria, quando as
pesquisas de M. Charcot e seus discípulos encontram nela — poder-se-ia dizer, a
cada dia — sintomas novos, dos quais antes não se suspeitara. Mas devo
considerar as coisas tal como são no momento. A ocorrência de paralisia facial
histérica é firmemente rejeitada por M. Charcot e, mesmo que acreditemos que
isso possa ocorrer, trata-se de um fenômeno muito raro. Na histeria, a
hemianopsia ainda não foi observada, e penso que jamais o será.
Como é, portanto, que as paralisias
histéricas, conquanto estreitamente assemelhadas às paralisias corticais, divergem
destas pelas características diferenciais que tentei destacar? E qual é a
característica genética do tipo especial de representação com o qual devem
estar associadas? A resposta a essa questão incluiria uma parte extensa e
importante da teoria da neurose.
III
Não existe a mais leve dúvida quanto às
condições que regem a sintomatologia da paralisia cerebral. Tais condições são
constituídas pelos fatos da anatomia — a estruturação do sistema nervoso e a
distribuição de seus vasos — e a relação entre essas duas séries de fatos e as
circunstâncias da lesão. Assinalamos que o número menor de fibras que vêm da
medula até o córtex, em comparação com o menor número de fibras que vêm da
periferia até a medula, é a base da diferença entre a paralisia em projeção e a
paralisia em representação. Da mesma forma, cada detalhe clínico da paralisia
em representação pode ser explicado por algum detalhe da estrutura cerebral; e,
inversamente, a partir das características clínicas das paralisias podemos
deduzir a estrutura do cérebro. Penso que existe um completo paralelismo entre
essas duas séries.
Assim, se não há grande facilidade para
a dissociação na paralisia cerebral comum, isto se dá porque as fibras motoras
percorrem tão unidas um longo trecho do seu trajeto intracerebral que não podem
ser lesadas individualmente. Se a paralisia cortical mostra maior tendência a
ser monoplégica, isso ocorre porque o diâmetro dos feixes condutores (braquial,
crural etc.) aumenta no sentido do córtex. Se a paralisia da mão é a mais completa
de todas as paralisias corticais, isso se deve, segundo pensamos, ao fato de
que a relação cruzada entre o hemisfério cerebral e a periferia é mais atingida
por uma paralisia do que o segmento proximal; supomos que as fibras
representativas do segmento distal sejam muito mais numerosas do que as do
segmento proximal, de modo que a influência cortical se torna mais importante
para a parte distal do que para a proximal. Quando as lesões muito extensas do
córtex não conseguem produzir monoplegias puras, inferimos que os centros
motores no córtex estão nitidamente separados uns dos outros por território
neutro, ou inferimos que existem fatores operando à distância (Fernwirkungen),
que pareceriam anular o efeito de uma separação precisa entre os centros.
De igual maneira, se, na afasia
orgânica, sempre há uma mistura de distúrbios de diferentes funções, isso pode
ser explicado pelo fato de que os ramos da mesma artéria irrigam todos os
centros da fala, ou, se for aceita a opinião expressada no meu estudo crítico
da afasia [Freud, 1891b], pelo fato de que não estamos tratando de centros
separados, mas de uma área contínua de associação. Seja como for, sempre se
pode encontrar uma explicação baseada na anatomia.
As notáveis associações com tanta
freqüência observadas clinicamente nas paralisias corticais (afasia motora e
hemiplegia à direita, alexia e hemianopsia à direita) são explicadas pela
proximidade dos centros lesados.A hemianopsia como tal, sintoma muito curioso e
estranho para uma mente não-científica, só é explicável pelo cruzamento das
fibras do nervo óptico no quiasma; é a expressão clínica desse cruzamento,
assim como todo detalhe das paralisias cerebrais é a expressão clínica de um
fato da anatomia.
De vez que só pode haver uma única
anatomia cerebral verdadeira, de vez que ela se expressa nas características
clínicas das paralisias cerebrais, evidentemente é impossível que essa anatomia
constitua explicação dos aspectos diferenciais das paralisias histéricas. Por
essa razão, não devemos, com base na sintomatologia dessas paralisias
histéricas, tirar conclusões sobre a anatomia cerebral.
A fim de explicar esse difícil problema,
por certo devemos considerar a natureza da lesão em estudo. Nas paralisias
orgânicas, a natureza da lesão desempenha um papel secundário;
ao contrário, são a extensão e a localização da lesão que, em determinadas
condições estruturais do sistema nervoso, produzem as características da
paralisia orgânica que indicamos. Qual poderia ser a natureza da lesão, na
paralisia histérica, que define a situação sem respeitar a localização ou a
extensão da lesão ou da anatomia do sistema nervoso?
Em diversas ocasiões ouvimos M. Charcot
dizer que se trata de uma lesão cortical, mas uma lesão puramente dinâmica ou
funcional. Esta é uma tese cujo aspecto negativo podemos entender facilmente:
equivale a afirmar que nenhuma modificação tecidual detectável será encontrada post
mortem. Mas, no seu aspecto positivo, sua interpretação está longe de ser
inequívoca. Afinal, o que é uma lesão dinâmica? Tenho bastante certeza de que
muitos daqueles que leram as obras de M. Charcot acreditam que uma lesão
dinâmica é realmente uma lesão, contudo uma lesão da qual, após a morte, não se
encontra nenhum vestígio, tal como um edema, uma anemia ou uma hiperemia ativa.
Contudo, esses sinais, embora não necessariamente possam persistir após a
morte, são lesões orgânicas verdadeiras, mesmo que sejam mínimas e
transitórias. As paralisias partilhariam das características das paralisias
orgânicas. Nem o edema nem a anemia, não menos do que a hemorragia ou o
amolecimento, poderiam produzir a dissociação e a intensidade das paralisias
histéricas. A única diferença estaria em que a paralisia devida a edema, por
constrição vascular etc. seria menos duradoura do que a paralisia devida à
destruição do tecido nervoso. Elas têm em comum todas as outras condições, e a
anatomia do sistema nervoso determinará as propriedades da paralisia, tanto no
caso de uma anemia transitória, como no caso de uma anemia que é permanente e
final.
Estes comentários não me parecem
totalmente prescindíveis. Se alguém ler que “deve haver uma lesão histérica”
nesse ou naquele centro, o mesmo centro no qual uma lesão orgânica produziria
uma correspondente síndrome orgânica, e recordar que se está acostumado a
localizar uma lesão dinâmica histérica da mesma forma que uma lesão orgânica,
será levado a crer que por trás da expressão “lesão dinâmica” está oculta a
idéia de uma lesão como edema ou anemia, que são, de fato, afecções orgânicas
transitórias. Eu, pelo contrário, afirmo que a lesão nas paralisias histéricas
deve ser completamente independente da anatomia do sistema nervoso, pois, nas
suas paralisias e em outras manifestações, a histeria se comporta como se a
anatomia não existisse, ou como se não tivesse conhecimento desta.
E, de fato, um bom número de
características das paralisias histéricas justifica essa afirmação. A histeria
ignora a distribuição dos nervos, e é por isso que não simula paralisias
periférico-medulares ou paralisias em projeção. Ela não conhece o quiasma
óptico e, por conseguinte, não produz hemianopsia. Ela toma os órgãos pelo
sentido comum, popular, dos nomes que eles têm: a perna é a perna até sua
inserção no quadril, o braço é o membro superior tal como aparece visível sob a
roupa. Não há motivo para acrescentar à paralisia do braço a paralisia da face.
Um histérico que não consegue falar não tem motivo para esquecer que compreende
a fala, de vez que a afasia motora e a surdez para a palavra não estão
correlacionadas entre si na concepção popular, e assim por diante. Só posso
concordar inteiramente com as opiniões expressas por M. Janet em números
recentes dos Archives de Neurologie; elas são confirmadas tanto
pelas paralisias histéricas como pela anestesia e pelos sintomas psíquicos.
IV
Por fim, procurarei indicar como poderia
ser essa lesão causadora das paralisias histéricas. Não digo que mostrarei que
tipo de lesão é; pretendo simplesmente indicar uma linha de pensamento, a qual
poderia levar a uma concepção que não contraria as propriedades da paralisia
histérica, na medida em que esta difere da paralisia cerebral orgânica.
Tomarei a expressão “lesão funcional ou
dinâmica” no seu sentido próprio, isto é, “modificação na função ou na
dinâmica” — modificação de uma propriedade funcional. Exemplos de modificação
dessa espécie seria numa diminuição na excitabilidade ou numa qualidade
fisiológica que normalmente permanece constante ou varia dentro de limites
fixos.
Mas,
objeta-se, a modificação funcional não é uma coisa diferente da modificação
orgânica, é simplesmente o outro lado desta. Suponhamos que o tecido nervoso
esteja num estado de anemia transitória; nesse caso, essa circunstância diminui
sua excitabilidade. É impossível, com esse expediente, deixar de levar em conta
as lesões orgânicas.
Tentarei mostrar que pode haver
modificação funcional sem lesão orgânica concomitante — ou, ao menos, sem lesão
nitidamente perceptível até a mais minuciosa análise. Em outras palavras, darei
um exemplo adequado de modificação de uma função primitiva; e, com essa
finalidade, somente peço permissão para passar à área da psicologia — que
dificilmente se pode evitar, em se tratando de histeria.
Estou de acordo com M. Janet quando diz
que, na paralisia histérica, assim como na anestesia etc., o que está em
questão é a concepção corrente, popular, dos órgãos e do corpo em geral. Essa
concepção não se fundamenta num conhecimento profundo de neuroanatomia, mas nas
nossas percepções tácteis e, principalmente, visuais. Se é isso o que determina
as características da paralisia histérica, esta, naturalmente, deve mostrar-se
ignorante e independente de qualquer noção da anatomia do sistema nervoso.
Portanto, na paralisia histérica, a lesão será uma modificação da concepção,
da idéia de braço, por exemplo. Mas que espécie de modificação
será essa, capaz de produzir a paralisia?
Considerada do ponto de vista
psicológico, a paralisia do braço consiste no fato de que a concepção do braço
não consegue entrar em associação com as outras idéias constituintes do ego,
das quais o corpo da pessoa é parte importante. A lesão, portanto, seria a abolição
da acessibilidade associativa da concepção do braço. O braço comporta-se
como se não existisse para as operações das associações. Não há dúvida de que,
se as condições materiais correspondentes à concepção do braço estão
profundamente modificadas, a concepção também será prejudicada. Mas tenho de
demonstrar que esta consegue estar inacessível sem estar destruída e sem estar
lesado o seu substrato material (o tecido nervoso da região correspondente do
córtex).
Começarei mostrando alguns exemplos
extraídos da vida social. Uma história cômica narra que um homem de grande
lealdade não queria lavar a mão porque seu soberano a tinha tocado. A relação
dessa mão com a imagem do rei parecia tão importante para a vida do homem que
ele se recusava a deixar que a mão entrasse em qualquer outra relação. Estamos
obedecendo ao mesmo impulso quando quebramos a taça em que bebemos à saúde de
um par recém-casado. Na Antiguidade, as tribos selvagens que queimavam o cavalo
do seu chefe morto, suas armas e até mesmo suas esposas, juntamente com seu
corpo morto, estavam obedecendo à concepção segundo a qual ninguém jamais
deveria tocá-los. A força de todas essas ações é evidente. A quantidade de
afeto que devotamos à primeira associação de um objeto oferece resistência a
que ela entre numa nova associação com outro objeto e, por conseguinte, torna a
idéia do [primeiro] objeto inacessível à associação.
Não se trata de uma simples comparação;
é quase a mesma coisa, quando passamos à esfera da psicologia das concepções. Se,
numa associação, a concepção do braço está envolvida com uma grande quantidade
de afeto, essa concepção será inacessível ao livre jogo das outras associações. O
braço estará paralisado em proporção com a persistência dessa quantidade de
afeto ou com a diminuição através de meios psíquicos apropriados. Esta é a
solução do problema que levantamos, pois em todos os casos de paralisia
histérica verificamos que o órgão paralisado ou a função abolida estão
envolvidos numa associação subconsciente que é revestida de uma grande carga de
afeto, e pode ser demonstrado que o braço tem seus movimentos liberados tão
logo essa quantidade de afeto seja eliminada. Por conseguinte, a concepção
do braço existe no substrato material, mas não está acessível às associações e impulsos
conscientes, porque a totalidade de sua afinidade associativa está, por assim
dizer, impregnada de uma associação subconsciente com a lembrança do evento, o
trauma, que produziu a paralisia.
M. Charcot foi o primeiro a nos ensinar
que, para explicar a neurose histérica, devemos concentrar-nos na psicologia.
Breuer e eu seguimos seu exemplo numa comunicação preliminar (1893a) “Sobre o
Mecanismo Psíquico dos Fenômenos Histéricos”. Nesse artigo, mostramos que os
sintomas permanentes da histeria que são descritos como “não-traumáticos” são
explicados (com exceção dos estigmas) pelo mesmo mecanismo que Charcot
identificou nas paralisias traumáticas. Mas também mostramos o motivo que
explica a persistência desses sintomas e mostramos por que eles podem ser
curados por um método especial de psicoterapia hipnótica. Todo evento, toda
impressão psíquica é revestida de uma determinada carga de afeto (Affektbetrag)
da qual o ego se desfaz, seja por meio de uma reação motora, seja pela
atividade psíquica associativa. Se a pessoa é incapaz de eliminar esse afeto
excedente ou se mostra relutante em fazê-lo, a lembrança da impressão passa a
ter a importância de um trauma e se torna causa de sintomas histéricos
permanentes.
A impossibilidade de eliminação torna-se
evidente quando a impressão permanece no subconsciente. Denominamos a essa
teoria “Das Abreagieren der Reizzuwächse”.
Para resumir, penso que está em completo
acordo com nossa opinião geral acerca da histeria, já que conseguimos moldá-la
segundo o ensinamento de M. Charcot, supor que a lesão, nas paralisias
histéricas, não consiste senão na incapacidade do órgão ou função em exame de
ter acesso às associações do ego consciente; que essa modificação puramente
funcional (mesmo não estando afetada a concepção) é causada pela fixação dessa
concepção numa associação subconsciente com a lembrança do trauma; e que essa
concepção não fica liberada e acessível enquanto a carga de afeto do trauma
psíquico não é eliminada por uma reação motora adequada ou pela atividade psíquica
consciente. Mas, mesmo que não ocorra esse mecanismo, se uma idéia
auto-sugestiva direta sempre é necessária para haver uma paralisia histérica,
como se depreende dos casos clínicos de traumas de M. Charcot, conseguimos
demonstrar qual teria de ser a natureza da lesão, ou melhor,
da modificação, na paralisia histérica, a fim de explicar as diferenças entre
esta e a paralisia cerebral orgânica.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
Freud,
S. (1969). Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras
orgânicas e histéricas (Vol. 1). Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 1893).